quarta-feira, 16 de outubro de 2013

Crônica duma correspondência










Fui incumbida duma tarefa; na verdade eu aceitei o pedido de meu filho em ir até aos correios para saber o que havia acontecido com um pacote dado como entregue, porém sem isto ter acontecido.Apesar dele ter rastreado os caminhos da encomenda e comprovado sua entrega no endereço confirmado, a dita cuja não havia chegado.Lá fui eu pro posto saber o que tinha ocorrido.Munida da documentação, expliquei tudinho pra funcionária, que leu as guias, olhou na tela e me disse:__ A senhora tem de perguntar pro carteiro da região.Tá aqui o telefone dele.É só ligar.

Saí do guichê, com aquele papelzinho na mão meio descrente sobre o que faria a seguir.A fila que se encompridava até a porta da agência não me animava a encará-la de novo.Seria isto mesmo? Eu teria de ligar pro carteiro e perguntar onde ele havia entregue a encomenda que não chegara?EU?

Enquanto caminhava pela rua fui imaginando como perguntaria tal fato sem ofender o carteiro e meus passos me levaram a uma pequena cafeteria.Sentei-me pensativa.Pedi desta vez um chá que caía bem naquele dia ventoso e ao degustar o sabor e o aroma conjugados naquela infusão me recordei do tempo em que eu sabia o nome do carteiro da minha rua e sempre trocava dois dedinhos de prosa com ele ao nos cruzarmos na entrada do prédio que eu morava.Nada de maior nota, apenas comentários passageiros sobre o tempo, sobre o movimento da rua, e era só, porém eu me achava próxima daquele agradável senhor encurvado sob o peso da mochila abarrotada de cartas e afins;portador de esperanças, de compromissos, de boas e más novas, de possibilidades...aquele que leva o mundo, mas não vai lá__ verso duma canção que procura definir a função deste trabalhador silencioso, quase invisível por quem mora em prédios, mas não só, porque hoje em dia, mesmo quem mora em casas pouco ou nunca vê o carteiro da sua rua. 

Tomei consciência de como é difícil a vida dos carteiros.Percorrem distâncias enormes carregando ou puxando o peso das correspondências do dia e nem recebem um cumprimento ou um sorriso, um elogio, ao contrário só são interpelados com cobranças sobre a realização do seu trabalho, se foi eficiente ou não e, eu iria engrossar a lista dos cobradores irritados com a falha técnica.Me recusei.Liguei pro filho, expliquei o que acontecera, fiz-lhe recomendações sobre como deveria se dirigir ao carteiro e dei por encerrada a minha missão.

Antes de pegar o carro no estacionamento subi ao apartamento do filho para dar muitas beijocas na netinha e qual não foi minha grata surpresa ao chegar na portaria e encontrar o carteiro entregando a encomenda endereçada a meu filho.Cumprimentei-o, desejei-lhe um bom resto do dia e peguei o elevador toda sorridente com a providência fortuita do destino. 

Assumo minha camada nostálgica e dela me orgulho no que se refere aos bons modos hospitaleiros que já puderam ser vivamente praticados quando as cidades ainda favoreciam os encontros despretensiosos entre as gentes de sua convivência. 




O Solitário



Como alguém que por mares desconhecidos viajou, 
assim sou eu entre os que nunca deixaram a sua pátria; 
os dias cheios estão sobre as suas mesas 
mas para mim a distância é puro sonho. 

Penetra profundamente no meu rosto um mundo, 
tão desabitado talvez como uma lua; 
mas eles não deixam um único pensamento só, 
e todas as suas palavras são habitadas. 

As coisas que de longe trouxe comigo 
parecem muito raras, comparadas com as suas :
na sua vasta pátria são feras, 
aqui sustém a respiração, por vergonha. 



(Rainer Maria Rilke)





 Imagem: pinterest

14 comentários:

  1. Querida Calu,
    E deu mesmo numa bela crônica, daquelas que a gente lê com prazer e vontade de saber o desfecho. E o desfecho, te conhecendo, só poderia ser bem pensado, típico de alguém que sabe que algumas tentativas acabam não dando em nada, a não ser em mais complicação, pois que hoje em dia há tanta gente nos bairros, nos condomínios de prédios e como um pobre carteiro vai lembrar de tanto detalhe. A impressão que me dá hoje em dia é que ninguém quer se comprometer ou ter o trabalho de ajudar o outro, veja você, teve que entrar numa fila, perguntar à moça e ela passou a resposta para outra pessoa. É tudo muito impessoal hoje em dia, principalmente nas grandes cidades.
    Ainda bem que pessoas como você, dotadas de solidariedade humana e discernimento, pensa, aguarda e age de uma boa maneira. O encontro com ele foi uma recompensa pelo seu ato.
    um beijinho carioca


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  2. Que linda crônica,Calu! Incrível como as coisas acontecem em nossos cotidianos...E, ficamos tristes com essas mudanças todas, onde se perde o contato com as pessoas que nos prestam serviços e, no caso do carteiro, tão importante.

    Pena e ainda bem que acabou bem, o pacote apareceu e tudo acabou na maior gentileza. Valeu! beijos e a poesia, linda e reflexiva! chica

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  3. Lembrei do carteiro da minha infância (Seu Brás), sua escrita é linda demais Calu!
    beijo grande

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  4. Olá Calu!
    Uma providência fortuita que rendeu uma belíssima crônica saudosamente atual.;-)
    Já pesquei para o E-Library... tudo bem?

    Abração
    Jan

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  5. O que dizer? Que lindo, Calu...
    Amo ler você!
    Bjs e obrigada por compartilhar!

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  6. Belíssimo,Calu!

    Que Crônica maravilhosa!

    Blog nota 1000 o seu,amiga.


    Beijinhos e ótima semana

    Dryka









    Blog Suas Histórias Nossas Histórias

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  7. Olá Calu, como vai? Adorei ler a sua crónica pela lembrança carinhosa dessa figura incontornável e tão respeitável - o carteiro - que transporta o mundo nas suas mãos e se desloca de prédio em prédio deixando sentimentos ou outras situações envoltos em simples papel, mas de extrema utilidade para todos nós, muitas vezes sem se cruzarem com aqueles a quem se dirigem. Grandiosa a sua ponderação que culminou num desfecho bem agradável. Obrigada pelas suas maravilhosas reflexões. Beijinhos e bom fim de semana. (Sobre o meu "post": isto por aqui está a mudar para muitooooo pior. O OE/2014 uma coisa horrível para os mais pobres e reformados)

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  8. Estou aqui pensando em como a tua crônica foi de encontro à minha. Também me lembro quando o Correio Nacional era referência em credibilidade. Agora ficou difícil acreditar. Nem com a invenção de SEDEX e rastreamento de encomenda. Este ano já passamos por algo parecido e até depois de muita procura e termos que ir buscar a encomenda na agência, o site dizia que estava em "transporte". Dias depois recebemos aviso dos correios para ir buscar a encomenda...quando ela já estava em nosso poder há vários dias. Espetáculo de serviço público, não? Quanto ao carteiro, também me lembro de quando ele nem via o endereço, porque sabia o nome de todos e não se enganava. Hoje temos cada mês um diferente, sabe-se lá por quê.

    Beijos Calu e fica de olho quando baterem palmas no portão. Carteeeeiro! hehehe

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  9. Olá Calu,
    Que feliz final teve a encomenda do seu filho, tendo encontrado o destino certo!
    Quando eu ainda morava no Brasil, em Santos, minha mãe ficava de guardiã das minhas correspondências que chegavam de Portugal. Ela sempre conversava com o carteiro que atendia a nossa antiga rua e muito atencioso a tranquilizava. Ela sabia o nome do rapaz e ele o dela. Decidimos mudar de endereço e ela logo foi perguntando se ele também prestava seus serviços naquela outra rua, já que era ao dobrar da esquina. Mas não! Ela ficou desolada. E me deixou a tarefa de comprar um mimo para ele: um perfume de uma famosa indústria brasileira de cosméticos. Missão dada por mãe, é missão cumprida! Ele o entregou na semana em que mudamos. Ele ficou surpreso e comovido.
    Acredito que ela o quis presentear não por causa das entregas das encomendas e correspondências, mas por causa da dedo de prosa.
    Linda crônica, mais uma vez!
    Bjs.

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  10. Olá, querida Calu
    Há quase vinte anos eu tenho um caso amoroso com os correios do Brasil.... rs...
    Faço a maior propaganda deles pela pessoa dos carteiros... sempre minhas encomendas chegam direitinho...
    Por todo canto de Brasil e, agora, para fora também...Aliás, num passado, usei muito o internacional e, depois, dei um tempo...
    Foi ótimo o seu post!!! Incrível como um solitário nos tira da solidão!!!
    Meu blog de Maria do qual vc é seguidora faz 2 anos e vou comemorar pedindo aos amigos dele que me enviem uma qualidade da sua mãe (viva ou falecida)...
    Vc deve gostar da homenagem a ela e ao seu blog...

    http://www.espiritual-maria.com.br/

    Muito obrigada pela participação, desde já...
    Bjm de paz e bem

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  11. Olá!Bom dia Calu
    que linda crônica bem complementada com o Solitário de Rainer...parabéns!
    ... a modernidade que nos faz sentir a frieza de uma vida social menos solidária tomando conta de nosso ser. Pensávamos que bastava dar uns passos atrás e tudo voltaria ao normal, mas, estamos perdendo os encontros despretensiosos entre as gentes de sua convivência,o direito da cadeira na calçada à espera do carteiro com ansiedade e alegria , perdemos a primeira beleza das cartas que dependiam da entrega e do comentário do carteiro, que sempre acrescentava algumas palavras simpáticas... ...estamos perdendo o carteiro que trilhava uma intensa jornada de disciplina e responsabilidade aliada à obstinação, esforço e dedicação ,que contrariava a imagem, muitas vezes negativa, do serviço público no Brasil.. Ah! que saudades...
    “Arrebente e estafe quantos cavalos necessários, mas entregue a carta com toda a urgência. Se não arrebentar uma dúzia de cavalos, no caminho, nunca mais será correio, tenha consciência do que faz!” Conselheiro José Bonifácio de Andrada e Silva
    Agradecido pelo carinho, sempre!
    Bela tarde e noite de sábado e ótimo final de semana
    Beijos

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  12. Oi,Calu.Estou tentando ler outros de seus belos posts,mas meu pc está travando.

    Já comentei essa.

    Fiquei triste,pois não vi meu blog na sua lista de blogs e o seu está na minha.

    Beijinhos


    Obrigada pelas visitas

    Dryka

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  13. Olá amiga Calu.

    Desculpa estes dias de ausência, mas agora cá estou.
    Cheguei!
    Estou a fazer um novo curso e isto, às vezes, mantém-me um tanto ocupada e com menos disponibilidade para o blog.
    No entanto, estou aqui e vim ver-te. Estava em dívida!
    Gostei muito do post, trouxe-me recordações. Lembrei-me que há uns 15 anos atrás havia um carteiro que por vezes, chegava a vir entregar-me aqui dentro de casa as encomendas dos livros que fazia via postal e de lhe dar cartas que escrevia para uma amiga. As cartas já tinham o selo e portanto, era só entregar no posto dos correios. Quando era assim, cheguei a dar-lhe algum dinheiro para ele beber uma cerveja, ou assim.
    Actualmente, não o conheço o carteiro e as cartas dos amigos recebo-as por email.

    Beijos amiga,

    Cris Henriques

    http://oqueomeucoracaodiz.blogspot.com/10/2014/o-fruto-proibido-e-o-mais-apetecido.html

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  14. Encantei-me com sua linda crônica, conforme fui lendo a curiosidade do desfecho foi aguçando. Quando pensava como você faria para abordar o carteiro, eis que a correspondência chega.
    Calu admiro o trabalho dos carteiros. O carteiro aqui da minha rua sempre para nos portões para um dedo de prosa. Ele é muito educado e carismático.

    Beijos.

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Teu comentário é o fractal que faltava neste mosaico.
Obrigada por tua presença querida!