segunda-feira, 3 de junho de 2013

O DIREITO A LER



Já fui surpreendida por muitas situações inesperadas num dia comum em meio a afazeres rotineiros, daqueles que ficamos ligados no automático e vamos assoviando e chupando cana a um só tempo; no agora com a cabeça meia hora adiante.A última foi anteontem, no supermercado.Lista memorizada, saí percorrendo as prateleiras que precisava numa perfomance invejável a uma corredora de obstáculos.Tudo escolhido, fui pro caixa. Passa, passa, passa: produto e preços.Aí teve um que acusou produto não cadastrado.A funcionária chamou um dos jovens empacotadores e pediu-lhe que fosse verificar o preço.Tempo passando e os olhares feios pra mim iam aumentando e nada do garoto voltar.Já estava desistindo do produto quando ele chegou no caixa dizendo que não havia encontrado a prateleira.A moça reclamou e ia chamando o gerente quando a impedi pedindo que deixasse para lá, afinal não era nada de tão importante que não pudesse ser substituído. Enquanto segui o ritmo da leitora de preços, a funcionária do caixa ao lado se esticou falando bem perto de mim: __" Ele não sabe ler, dona."

Me senti a poeira da estrada.Como é que não saquei isto logo? Envolvida com minhas tarefas não parei pra observar o próximo; um jovem como tantos outros que foram meus alunos e em situação tão adversa à deles.Me aproximei, perguntei seu nome sob o olhar severo do gerente por eu estar atrapalhando o andamento do serviço, ele mal me respondeu.Resolvi não me estender muito pra não prejudicá-lo no trabalho, mas perguntei-lhe se frequentava a escola ao que me respondeu com um movimento negativo da cabeça.Falei-lhe quase ao ouvido:
__ Não importa agora o que te fez desistir da escola, importa é que a escola não desistiu de vc.Existe o programa da EJA, à noite, para alunos trabalhadores feito vc. Me prometa que irá na escola mais próxima de sua casa se informar.

Ele fez que sim com a cabeça.Pode ter sido por querer se livrar de mim, mas espero sinceramente que não tenha sido isto.Trabalhei por apenas um ano na EJA e guardo preciosas recordações desse tempo que convivi com adultos analfabetos sedentos do aprendizado da leitura e da escrita.Pessoas, algumas mais velhas que eu, sorvendo cada etapa das aulas, dispostas em cada atividade, participantes em todos os projetos. Uma gratificante experiência para todo professor(a) mediar a aprendizagem de quem quer aprender.Isto é o nirvana.

Hoje é um dia importante para a Educação brasileira, marca os 50 anos do projeto de alfabetização criado por Paulo Freire:" de pé no chão também se aprende a ler",também conhecido como as 40 horas de Angicos, que quatro meses depois de sua implementação o país tinha menos 300 analfabetos.O projeto rompia com os conceitos de alfabetização da época baseando-se nas experiências de vida das pessoas como temas recorrentes nas lições de leitura e escrita incentivando  com isso o espírito crítico, a leitura de mundo, a valorização da cultura local. As palavras geradoras compunham as famílias das palavras que iam se avolumando no decorrer do processo dando significado e ressignificando o estudo a cada etapa.

Um método que é válido até hoje, dentro e fora do país, ressoa o trabalho deste educador icônico, um dos brasileiros mais estudados no exterior que nos deixou um legado marcante e inesquecível. No Brasil fala-se pouco de Paulo Freire que foi preso e exilado na época da ditadura por ter sido considerado subversivo; absurdos da nossa história recente.Enquanto isto, lá fora, as grandes universidades americanas e européias lembram na sala de aula a importância de Paulo Freire.

Hoje sim, eu considero um dia que merecia ser feriado nacional.Um dia para ficar marcado no calendário do país como data histórica e realizadora do respeito e da valorização do povo brasileiro.


Prof. Paulo Freire
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Imagens: portalnoal.com

21 comentários:

  1. Terrível realidade Calu. No sentimos tão pequenos nessas horas nem saber como ajudar.
    beijão

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  2. Puxa, como é triste nos depararmos com pessoas assim ainda hoje. Tomara tenha escutado teu aviso. Um dia realmente importante hoje! beijos,tudo de bom,linda semana!chica

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  3. Querida Calu
    Venho congratular-me contigo pela evocação de Paulo Freire. Para mim, ele foi um herói em tempos tão difíceis. Acho que é dele um livro chamado A Psicologia do Oprimido que li depois do 25 de Abril de 1974, após a nossa Revolução dos Cravos. (É que ele explica como o oprimido vira opressor, quando a situação muda...)
    Mas a minha admiração por ele, vem dos tempos do início da minha carreira de professora em que eu fiz alfabetização pelo Método de Paulo Freire, nos tempos do domínio de Salazar, em que não podíamos falar em Liberdade, em espírito crítico, etc.
    Hoje, por estar na aldeia e ter um portátil à disposição, consegui mandar-te este comentário. Um grande abraço e tenhamos esperança de que as tuas palavras àquele menino, dêem fruto, com a graça de Deus. Bjs. Bombom

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  4. Coitado do rapaz, ele deve morrer de vergonha, certamente el procurará um escola, tomara que seu desejo de saber ler seja maior que sua vergonha. Depois tu volte lá para ver se ele foi, se não leve ele. Que pecado, tive na família uma tia que não sabia ler e para ela isso era motivo de grande tristeza e vergonha.
    Bjos e tenha um semana maravilhosa.

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  5. Sou muito fã de Paulo Freire! Nem todos tem as pessoas tem as mesmas oportunidades de freuentar a escola (embora o governo finja que sim) e o trabalo dele sempre foi excepcional.
    bjs
    Jussara

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  6. Clap clap Clap! E eu apoio de pé este feriado, pois Paulo Freire além de ser um ícone na educação do país, inspirou pessoas como você, eu e tantos outros, a não desistirem do conhecimento, incentivando-os, pois esta é a luz que abre todos os caminhos - a Educação.
    Tomara que este menino te ouça e procure um jeito de estudar à noite, vejo tantos que conseguiram e estão com suas vidas melhores.
    Viva Paulo Freire!
    um grande abraço carioca, querida mestra.



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  7. Nesta postagem, fica evidente a importância do "conhecimento".

    Abração
    Jan

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  8. O caminho que fez para chegar no Paulo Freire, é de uma terrível realidade que chega a doer neste Brasil.Não se entende como um projeto possa ter sido desprezado.
    Parabéns Calu nesta bela lucidez.
    Uma linda semana a você amiga.
    Meu carinhoso abraço.

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  9. Calu, descaradamente me inspirei no seu post e também fiz um, obrigada!
    bjs
    Jussara

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  10. Calu,uma vergonha um país como o nosso ainda ter analfabetos.História comovente desse jovem e merecida homenagem a Paulo Freire!bjs,

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  11. Calu, que post lindo, claro e inspirador. Conheço pouco de Paulo Freire, mas o bastante para admirá-lo, só não sabia da data. Realmente, não se dá valor à educação, no Brasil, como sabemos bem.
    Fiquei sensibilizada pelo rapaz, mas também pensando pq os empresários, como o dono do supermercado, por ex., não fazem campanha incentivadora para esses meninos? Já que o emprega, no que está certíssimo, mas empregar e exigir deles (os menores) a inclusão escolar, mesmo porque esses garotos podem vir a ser grandes ajudantes para eles (os empresários), futuramente, né? A gente fica pensando, tem tantas maneiras de dar valor à nossa juventude, basta colocá-las em prática.
    E lembrar-nos, sempre, dos nossos nomes nacionais, que tanto lutaram pela educação.
    Beijo!

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  12. Admiro pessoas que, ao menos, procuram fazer a diferença na vida do outro. E foi o que você fez no momento que aconselhou o cara, agora é com ele.
    Acho que talvez, seja interessante, todo educador trabalhar com alfabetização de adultos, deve sair com outra visão das coisas.
    Boa terça parceira!

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  13. Paulo Freire é sensacional, espero que o rapaz tenha continuado pois com certeza só lhe trará coisas boas.

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  14. Olá, querida Calu
    Educar... alfabetizar... tudo está dentro da alma d agente e quem o faz assim prima pelo essencial na vida... outros valores sagrados virão agregados...
    Bjm de paz e bem

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  15. Olá!Boa tarde
    Calu
    Li atentamente...e meu comentário é de cunho absolutamente pessoal...
    ... que este menino te ouça e procure um jeito de estudar...É muito importante que isso continue acontecendo cada vez mais. Mas não podemos esquecer que ainda tem muita criança sem o acesso a escola, arte e cultura no Brasil...Nem todos tem as mesmas oportunidades de frequentar a escola...essa coragem de pôr em prática um autêntico trabalho de educação que identifica a alfabetização com um processo de conscientização, capacitando tanto para a aquisição dos instrumentos quanto para a sua libertação fez de Paulo Freire um dos primeiros brasileiros a serem exilados. Sua teoria enfatiza a necessidade de construção da autonomia e da criticidade individual para a modificação da condição histórica. Isso "chocou" os conservadores de plantão, que prezam por um sistema teórico para que as pessoas continuem acéfalas quanto a sua realidade social, que quando bem aplicada, dá "voz" àqueles que sempre estiveram calados. Pois o legado que ele nos deixa, é que não basta apenas saber ler e escrever, mas fazer uso social e político desse conhecimento na vida cotidiana, tomando assim consciência do mundo vivido.Ele foi um brasileiro brilhante e, alguns, tentam diminuir a grande contribuição q Paulo Freire deixou para a educação, e o fazem por simples extremismo e fundamentalismo ideológico...
    Obrigado pelo seu carinho de sempre
    Boa semana
    Beijos

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  16. Olá, Calu! Como você esta?

    Que tema crucial... em minha escola funciona o EJA, e toda segunda à noite, estou em HTPC e convivo com os alunos adultos.
    A rotatividade, ao mesmo tempo em que é grande, também dá espaço a casos de assiduidade que duram mais de dez anos.
    Sim, alguns alunos (com dislexias ou deficiência intelectual) estão a muito tempo em processo de alfabetização.
    Existe um terceiro grupo, daqueles que iniciam quase todo ano, frequentam uns meses e desistem, inconstantes.

    Quanto a Paulo Freire, podemos dizer que introduziu os rudimentos do "Letramento", vocábulo que ganhou corpo só após sua morte, em 02/05/97.
    No dia em que ele faleceu, eu cheguei do serviço e meu filho me aguardava:
    _Mãe, aquele velhinho barbudo que você gosta, morreu. Ligue a TV!
    Hoje, a alfabetização mudou muito, nós "alfabetizamos letrando", e a oralidade está com um peso enorme (temos "atividades de auditório").
    A leitura também passou a pesar muito mais que antigamente, onde se escrevia, escrevia e escrevia, mesmo sem reflexão suficiente.
    Aos seis anos, eles se familiarizam com textos diversos: cartaz, embalagem, artigos de jornal, gibis, literatura de qualidade, enfim... vão se letrando enquanto se alfabetizam.
    Meus aluninhos pegam num produto e vão logo procurando o código de barras, para ver se foi feito no Brasil, através da numeração. Lindinhos e espertos!

    Beijos, Calu.

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  17. Olá!Boa noite
    Calu
    imagine...nem precisava agradecer.Tem meu carinho!
    Fiquei muito feliz por isso.
    Beijos

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  18. Olá Calu,

    Isso é triste, mas é a realidade ainda no Brasil.
    Deve ser muito triste viver assim... É como viver perdido no meio de tudo. Viver no próprio País sem saber ler falar o próprio idioma.
    Conheço um casal que nunca foram a escola, não sabe ler nada mesmo, percebo que eles tem vergonha que alguém saiba, são super inteligentes, são caseiros de uma casa de veraneio que fica ao lado do de minha mana. Disseram-me que irão frequentar uma escola à noite, torço que eles consigam concluir pelo menos o primário. Paulo Freire é um grande homem grande professor. Gosto muito dele.

    Andei um pouco ausente da net, muitas coisas pra resolver e faltou tempo pra cuidar do blog, mas aqui de volta estou.

    Ótima semana!
    Beijos!

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  19. A frase é de Gianni Rodari: " É preciso que todos tenham acesso a todos os usos da linguagem, não para que todos sejam artistas, mas para que ninguém seja escravo."

    Beijo

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  20. Oh minha linda.. que post mais lindo..
    Arrepiei ao ler..
    Sinto suas verdades quando escreve, o modo como se dedica a cada linha para nos trazer o melhor de seus pensamentos, de suas convicções..
    Me tornei sua fã, desde que te conheci lá no Blog do Chris..
    Pela simplicidade dos seus pensamentos, e pela riqueza do seu amor em escrever..

    Espero sim que suas palavras estejam ecoando dentro dos pensamentos desse rapaz, e que ele dê chance a si mesmo de conhecer a riqueza do mundo da leitura..

    Um beijo minha linda.. e uma noite super especial viu?

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  21. Eu também sou professora, mas nunca trabalhei na EJA. Até gostaria. Dou aulas de inglês e já tive alunos mais velhos, adultos desesperados que precisavam aprender outra língua para o mundo dos negócios ou simplesmente para ganhar um pouquinho melhor. Para mim, era muito gratificante vê-los superar suas crenças negativas e suas limitações imaginárias e progredir em outro idioma. Imagino como deve ser ótimo ver esse sucesso em alunos da EJA! Deve ser incrível participar de vitórias assim. Espero que o "sim" que ele lhe fez tenha sido de coração e que tenha procurado um curso no qual pudesse recomeçar. É triste saber que há ainda casos assim em toda parte nesse Brasil de medo.

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Teu comentário é o fractal que faltava neste mosaico.
Obrigada por tua presença querida!