sábado, 20 de junho de 2020

A poesia é disciplina da magia



( Google)


Há alguns anos, o escritor moçambicano Mia Couto contou-me uma história de que gosto muito. O meu amigo terminara de escrever “Antes de nascer o mundo” (Companhia das Letras, 2009), romance no qual conta a história de Silvestre, um homem desiludido com a humanidade, que arrasta os dois filhos para uma região isolada porque, diz-lhes, o mundo acabou. 

O livro estava pronto, mas ainda não fora publicado, quando Mia recebeu uma proposta de trabalho, enquanto biólogo, que implicava uma viagem pelo interior do país. Numa aldeia remota encontrou um velho que lhe disse ser cego. Na manhã seguinte, porém, Mia encontrou-o a ler. “Mas você não me disse que era cego?”, perguntou-lhe. E o homem respondeu: “Só não sou cego enquanto leio”.

Na verdade, não tenho a certeza se a ficção adivinha o futuro, ou se, pelo contrário, o constrói. Esta é , aliás, a tese de meu novo romance. O que faça, afinal, é levar a sério a primeira frase de um dos livros mais lidos (e, provavelmente, menos compreendidos) do mundo – a Bíblia. “No princípio era a palavra”, afirma a Bíblia. Ou seja, antes do real, existia a palavra. É a palavra que cria a realidade.

Os magos, ou xamãs, em todas as culturas ao redor do globo, antes e depois da afirmação do cristianismo, acreditam no mesmo. Não por acaso, a poesia começou por ser uma disciplina da magia. A palavra evoca os deuses, dá existência a seres e a objetos. A palavra cria e descria os enredos, desenha a linha do tempo.

O momento que vivemos inquieta porque não conseguimos ver para além da montanha. Sim, sobreviveremos à pandemia. Mas sobreviveremos ao que vem depois?

Talvez a resposta já tenha sido escrita, algures, por algum escritor. Também por isso, nada melhor do que aproveitar os dias de isolamento para ler. Ler, aliás, é a melhor maneira de contrariar o isolamento. Leitores não são ilhas. São universos em expansão.

Trecho do artigo “No princípio era a palavra”, de José Eduardo Agualusa, publicado em 28/03/2020 no Segundo Caderno do jornal O Globo.




13 comentários:

  1. Gostei muito deste texto. Lendo, é obrigatório se entrar em reflexão pois a vida nem sempre é o que parece. "" Só não sou cego quando leio "". Dá que pensar...
    .
    Bom fim de semana
    Cumprimentos

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  2. Boa tardinha de sábado, querida amiga Calu!
    Tenho lido alguma coisa do escritor e ele nos ensina a ultrapassarmos nossos limites.
    Tantos enxergamos só pelos olhares físicos e nada podemos "ler" ...
    Muito boa mensagem de hoje, justamente quando estou numa tarde que amanhã ainda prevalece o Outono e leio na varanda bem confortável
    Como amo ler e enxergar.
    Tenha um ótimo final de semana abençoado!
    Boas leituras, minha amiga!
    Bjm carinhoso e fraterno de paz e bem

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  3. Que texto agradável que afirma a palavra como condutora da realidade, e o livros nos coloca em interação. E vamos poetar e nos emprenhar de magia.bjs

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  4. Bem reflexivo o texto, querida Calu.
    Gostei de ler.
    Um abençoado fim de semana.
    Beijinhos de
    Verena.

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  5. Um texto muito bom, e reflexivo! :))
    -

    Beijo, e um excelente fim de semana! :)

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  6. Dois poetas de nossa contemporaneidade - um angolano e o outro moçambicano - escrevem lindamente.
    Mia Couto é mestre em acentuar a ideia de leitura de forma simbólica, como diz em seu poema "Ler os Outros" e deve ter se inspirado neste homem que mesmo cego, lia, pois pode-se 'ler' de diversas formas, "lemos emoções nos rostos, sinais climáticos, lemos a vida na intenção de descoberta do nosso olhar" diz Mia.

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  7. Boa tarde Calu,
    Muito interessante essa história e a resposta do homem que disse «Só não sou cego quando leio»
    A leitura abre novos horizontes e nos dá a noção da realidade como diz Mia Couto.
    Vamos pela leitura!
    Obrigada por esta maravilhosa partilha que faz pensar.
    Um beijinho e continuação de bom domingo.
    Ailime

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  8. Vemos e muitas vezes não enxergamos...os sinais nos apontam realidades que não percebemos, sonhos nos dão pistas de fatos que ocorrerão, amores passam por nós e não nos apercebemos.
    Este texto nos faz pensar e refletir sobre a nossa"cegueira"..

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  9. Ler abre a nossa mente e os nossos olhos!!!
    Amiga, vem dar uma forcinha no meu bloguinho novo. ❤️
    Bjo 💋

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  10. Calu sempre com belos achados da literatura e numa generosa partilha.
    Isolar-se não significa morrer e assim é prefeito este mergulho nas leituras e delas emergir com belos pensamentos e inspirações. A historia da cegueira condicionada é fantástica Calu. Admiro o Mia e cada vez mais o vejo voando mais lindo.
    Grato Calu pela bela leitura.
    Carinhoso abraço e feliz semana.

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  11. Gostei muito,Calu e como Toninho falou,sempre tens belos achados que complementas aqui! Adorei! bjs, chica

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  12. Importante mensagem!
    Porém, mais do que a palavra, acredito que o pensamento é nosso maior criador.
    Abraços!

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  13. Um escritor que muito aprecio!
    Grata por esta belíssima partilha, Calu! Eu creio que sobreviveremos à pandemia... e ao mundo que virá depois... ainda que os seus efeitos económicos, se possam reflectir negativamente, talvez nos próximos 2 ou 3 anos...
    E estou convencida que uma vacina, estará emitente a surgir nos próximos meses... depois... juntaremos este Corona... a mais alguns que surgiram nos últimos anos... e dos quais, também nós já seremos portadores sem que os mesmos já se revelem problemáticos...
    Lembro-me que o H1-N1 era bem problemático, quando surgiu há uns anos... e hoje em dia, já vem incluído na vacina anual da gripe... que as pessoas de idade superior a 65 anos, são aconselhadas a tomar todos os anos...
    Temos de ser resilientes... e ganhar tempo, até que a bem dita vacina, surja...
    Um beijinho! Votos de tudo a correr pelo melhor, por aí!
    Ana

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Teu comentário é o fractal que faltava neste mosaico.
Obrigada por tua presença querida!