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Há alguns anos, o escritor moçambicano Mia Couto contou-me uma história de que gosto muito. O meu amigo terminara de escrever “Antes de nascer o mundo” (Companhia das Letras, 2009), romance no qual conta a história de Silvestre, um homem desiludido com a humanidade, que arrasta os dois filhos para uma região isolada porque, diz-lhes, o mundo acabou.
O livro estava pronto, mas ainda não fora publicado, quando Mia recebeu uma proposta de trabalho, enquanto biólogo, que implicava uma viagem pelo interior do país. Numa aldeia remota encontrou um velho que lhe disse ser cego. Na manhã seguinte, porém, Mia encontrou-o a ler. “Mas você não me disse que era cego?”, perguntou-lhe. E o homem respondeu: “Só não sou cego enquanto leio”.
Na verdade, não tenho a certeza se a ficção adivinha o futuro, ou se, pelo contrário, o constrói. Esta é , aliás, a tese de meu novo romance. O que faça, afinal, é levar a sério a primeira frase de um dos livros mais lidos (e, provavelmente, menos compreendidos) do mundo – a Bíblia. “No princípio era a palavra”, afirma a Bíblia. Ou seja, antes do real, existia a palavra. É a palavra que cria a realidade.
Os magos, ou xamãs, em todas as culturas ao redor do globo, antes e depois da afirmação do cristianismo, acreditam no mesmo. Não por acaso, a poesia começou por ser uma disciplina da magia. A palavra evoca os deuses, dá existência a seres e a objetos. A palavra cria e descria os enredos, desenha a linha do tempo.
O momento que vivemos inquieta porque não conseguimos ver para além da montanha. Sim, sobreviveremos à pandemia. Mas sobreviveremos ao que vem depois?
Talvez a resposta já tenha sido escrita, algures, por algum escritor. Também por isso, nada melhor do que aproveitar os dias de isolamento para ler. Ler, aliás, é a melhor maneira de contrariar o isolamento. Leitores não são ilhas. São universos em expansão.
Trecho do artigo “No princípio era a palavra”, de José Eduardo Agualusa, publicado em 28/03/2020 no Segundo Caderno do jornal O Globo.